29 de maio de 2016

A Reestruturação do Corpo de Fuzileiros

(Artigo retirado do C.F)O presente artigo relata um processo de mudança difícil, desafiante e prolongado mas que resultará num ganho significativo de recursos, de capacidade e de eficácia. E, porque a mudança altera rotinas, força-nos para fora das nossas áreas de conforto e introduz novas lógicas e/ou metodologias de funcionamento que requerem aprendizagem e adaptação antes que as consigamos dominar ou explorar na justa medida dos resultados que prosseguimos, é igualmente um artigo que nos pode fazer questionar determinados preconceitos, convidando-nos à reflexão e à discussão de ideias.

Pese embora exista a consciência de que até a lógica do «fazer mais com menos» também se esgota, a prioridade na tentativa de encontrar soluções para minimizar os efeitos muito negativos de uma conjuntura extremamente desfavorável, sempre foi a de preservar ao máximo os produtos institucionais. Ora, se houver espaço para ganhos de eficiência, a redução de recursos não tem de ser directamente reflectida na actividade. Mas os «ganhos de eficiência» não são muitas vezes compatíveis com metodologias e/ou com organizações muito rígidas e com pouca apetência para a mudança. Talvez por isso, a tendência natural dos processos de transformação nas FA se revele muitas vezes contrária à «razão» de preservar resultados, redundando em reduções da actividade e na redefinição dos «níveis de ambição». No caso da Marinha, o Corpo de Fuzileiros (CF) acabou por se tornar vulnerável a este tipo de pressões.

Em Setembro de 2014 os recursos humanos (RH) do CF encontravam-se 25% abaixo dos quadros de lotação aprovados: num total de cerca de 2.000 efectivo, estavam em falta cerca de 500 militares. O investimento nas forças e nas unidades de fuzileiros foi durante muitos anos residual. Parte significativa do material e do equipamento está velho e, em muitos casos, obsoleto. Existiam – e ainda persistem – lacunas ou insuficiências graves, como por exemplo ao nível dos equipamentos de comunicações tácticos e de teatro (SATCOM portátil), ou dos rádios individuais, que são em número insuficiente para equipar todas as forças que somos suposto gerar e projectar. Um número muito significativo de viaturas não respeita os requisitos necessários ao seu emprego num contexto anfíbio, e muitas dessas viaturas encontram-se avariadas, algumas com necessidades de reparação nada recomendáveis do ponto de vista do custo-benefício.

Apesar de tal quadro, e contrariamente ao que sucede com os navios, nenhuma daquelas insuficiências era apresentada como um reflexo na prontidão das unidades ou das forças de fuzileiros[1]. Esta impossibilidade[2] de se estabelecer uma relação entre as deficiências e a capacidade de gerar resultados, constituía uma enorme fragilidade, tornando difícil argumentar contra qualquer observador externo que acusasse o CF de estar sobredimensionado para o produto operacional que oferece, e/ou de querer manter uma estrutura que visa um «nível de ambição» – que muitos associam directamente à existência genérica de «batalhões» e ao Batalhão Ligeiro de Desembarque (BLD) – insustentável e desajustado da realidade.

E aquelas não eram críticas despiciendas, pois muita coisa mudou desde que ocorreu a última grande reestruturação nos fuzileiros: a natureza das ameaças alterou-se e revelaram-se ameaças que antes não existiam (como é o caso da cyber); os teatros transformaram-se (a designada war amongst people é apenas um exemplo); e a percepção pública passou a condicionar quer os processos de decisão quer as opções de emprego das forças. Ao nível das respostas a transformação das ameaças redundou em diferentes lógicas de utilização das forças; apareceram conceitos inovadores (como o de distributed operations) e desenvolveram-se novas Táticas, Técnicas e Procedimentos (TTP); a tecnologia permitiu explorar novos e mais poderosos «potenciadores de força («conhecimento situacional», blue track systems, etc.); e variáveis como a legitimidade, a responsabilização (accountability), a gestão do risco e a utilização de armamento menos letal passaram a ser críticas para a ação.

Mesmo reconhecendo que a criação do Destacamento de Acções Especiais (DAE) e do Pelotão de Abordagem (PELBORD) foram passos importantes na evolução das respostas operacionais do CF, é também importante admitir que toda a restante estrutura se manteve fiel à lógica para que fora criada: a interoperabilidade (doutrinária e organizacional) com aliados (em especial o United States Marine Corps (USMC)) no contexto das grandes operações anfíbias desenhadas no contexto da «guerra fria». Não era assim credível insistir que uma lógica organizacional e que um processo de geração de forças que pouco mudaram desde 1979 seriam capazes de responder a tão significativas transformações.


Fazer as coisas certas

Aceitando que a crítica, mesmo quando baseada em perceções ou leituras próprias, tem sempre um fundamento, a identificação daquilo a que nos referimos como «produto operacional» tornou-se um requisito essencial para o processo de reestruturação. E ao sustentar essa definição em elementos concretos garantimos que, além de tornar claro o porquê do «nível de ambição», estaremos a «fazer as coisas certas», princípio essencial para a credibilização dos resultados operacionais.

Sem querer entrar em grande pormenor sobre o conteúdo do Conceito Estratégico Militar de 2014 (CEM2014), importa ao leitor saber que as componentes (Ramos) contribuem para três tipos de forças de natureza conjunta: a Força de Reação Imediata (FRI), empregue em Operações de Evacuação de Não-combatentes (NEO) e no apoio à Proteção Civil e/ou às Forças e Serviços de Segurança (FSS) em «emergências complexas»; o Conjunto Modular de Forças (CMF), preparada para intervir em conflitos de todo o espectro no âmbito das alianças e parcerias de que Portugal é parte; e as Forças Permanentes em Ação de Soberania (FPAS), que asseguram tarefas de presença, patrulha, vigilância e o contributo das FA no combate a ilícitos no Espaço Estratégico de Interesse Nacional Permanente. Porém, o que releva para estruturação do produto operacional do CF é a prioridade dada a forças de pequeno escalão, e o aumento da capacidade de resposta, o que vem reforçar a ideia/necessidade de gerar e manter «forças de escalão companhia» em alta prontidão[3]. O emprego do BLD não é descartado pelo CEM2014, mas está assumido como uma situação limite, o que nos concede alguma margem de manobra no que respeita à sua categoria de prontidão.

Atentas aquelas grandes linhas de orientação, o «dispositivo de forças de referência» do CF (figura 1) passou a ser: três forças modulares, integrando o «reconhecimento», os «morteiros» e o «anticarro» como elementos orgânicos, de escalão companhia (FFZ); três grupos de botes de assalto, que correspondem ao Elemento de Assalto Anfíbio de cada uma das FFZ; uma unidade de Polícia Naval (que no limite gera uma força de escalão companhia); dez equipas de abordagem; e quatro grupos de combate de operações especiais (SOMTU, gerados a partir do DAE), pese embora só estejam edificados ainda dois. Além destes, e porque o CF opera outros meios além dos botes, manteve-se a Unidade de Meios de Desembarque (UMD) como a estrutura que projeta e assegura a permanente disponibilidade das Lanchas Rápidas (LR), das Lanchas de Assalto Rápido (LAR) e da Lancha de Desembarque Média (LDM).

A missão do Comandante do Corpo de Fuzileiros (CCF) passou a ser a de gerar e edificar aquele dispositivo, sendo este o propósito máximo da organização que comanda.

Alguns estranharão a referência a uma maior flexibilidade, também temporal, na geração e projecção do BLD, tantos anos tido como a referência na «organização para a acção» do CF. De facto, estamos a respeitar um princípio base do planeamento: prever a situação mais desfavorável e planear para a mais provável.

Esta regra é crítica quando os recursos disponíveis não permitem desenvolver as modalidades de acção necessárias para cobrir, em simultâneo, todas as hipóteses assumidas. Está relacionada com a assunção de risco e com a priorização de opções.


Fazer as coisas bem

Não basta estarmos focados em fazer o que é certo, também há que «fazer as coisas bem», ou seja, assegurar que conseguiremos optimizar a nossa organização de forma a maximizar os resultados. Uma organização que não esteja optimizada, ou dispersa os seus esforços, ou não consegue atingir os objectivos a que se propõe. Fazer as coisas bem é também um passo no sentido da «transparência da gestão», aspecto que estabelecemos como fundamental para promover a ligação entre recursos e resultados, falha que, como já se mencionou, constituía uma enorme vulnerabilidade do CF.

«Mexer» numa organização passa invariavelmente por refazer as relações de autoridade, o que equivale a reavaliar competências – «quem é quem» – e a redefinir as dependências – «quem se relaciona com quem», e por redistribuir o trabalho, ou seja, encontrando formas diferentes de dividir tarefas redefinindo «quem faz o quê». Mas ao fazê-lo estaremos também a alterar a forma como a organização funciona, obrigando a refazer processos, sendo muitas vezes esta uma etapa crítica quando se passa dos modelos para a execução. Muitos processos de transformação falham, ou são muito condicionados, porque a cultura organizacional, que em última instância determina «como as coisas se fazem», impede que se explorem novas formas de pensar e/ou de agir. Não se consegue alterar a organização porque «os processos não deixam» (!). No caso da reestruturação do CF ficou desde logo muito claro que haveria que «pensar diferente», e que não existiriam tabus ou dogmas que nos impedissem de enveredar por determinadas soluções, assim se considerassem essas as melhores opções para se atingirem os objectivos a que nos propúnhamos.

Para nós, «fazer as coisas bem» significava agilizar a estrutura de funcionamento, reduzindo o seu peso global face aos efectivos que passaram a constituir a componente operacional (dispositivo de forças) do CF. Neste particular, o Corpo revelava-se grande consumidor de RH, principalmente porque existia um número significativo de unidades independentes e autónomas que, além de gerarem muita burocracia, davam origem a sobreposições de responsabilidades, duplicação de tarefas, multiplicação de órgãos e serviços, e até replicação de infraestruturas, tais como paióis, escotarias, oficinas, etc.

Para além disso podia questionar-se o respeito por princípios básicos como a «consonância de propósito» e a «unidade de esforço», uma vez que funções essenciais da gestão, como o planeamento e o controlo, não se encontravam centralizadas. Na verdade, a cultura organizacional, reflectida numa organização muito compartimentada (figura 3) onde não existia um verdadeiro órgão integrador e coordenador, tornava o CF virtualmente ingerível. Melhorar os processos de gestão era uma prioridade, ainda que à custa da transferência de algumas das competências dos comandantes, da redefinição das suas esferas de acção e da centralização de serviços. Sintomático desta realidade era o desequilíbrio entre o esforço despendido em tarefas de natureza administrativa e o tempo consumido com a actividade operacional (conhecimento da doutrina, liderança, treino, tutoria, etc.), aspecto reiteradamente referido pelos comandantes durante as visitas do CCF às unidades. A solução não poderia então ser outra que não a de reduzir o número de unidades autónomas, retirar carga administrativa aos comandantes e recentrar a sua atenção naquilo que deverá ser a prioridade da sua ação: a manutenção de elevados níveis de proficiência e o garante dos padrões de prontidão operacional das forças subordinadas.

O primeiro passo foi o de identificar onde se encontravam os desajustamentos organizacionais face à forma como nos propúnhamos gerar e edificar o «novo sistema de forças». Relembrando que as forças (FFZ) passaram a estar constituídas e activadas em permanência, integrando, como elementos orgânicos, o reconhecimento, o anticarro e os morteiros, depressa resultou óbvio que as Companhias de Fuzileiros 11, 21 e 22, a CAF e a CATT não se adequavam à nova metodologia de geração de forças, pelo que se procedeu à sua desactivação e posterior extinção. As CF 12 e 23 já se encontravam desactivadas em resultado do défice de RH anteriormente referido. Redefiniu-se também a lógica subjacente à constituição do estado-maior (EM), que deixou de ser parte integrante da estrutura de funcionamento e passou a ser gerado no contexto da «organização para a acção» (crisis establishment (CE)). Isto equivale a dizer que o EM continua a ter um quadro orgânico próprio, mas que, embora esteja permanentemente constituído, só é activado quando o CCF exerce funções de comando de forças.

Concentrar no Comando do Corpo o planeamento, a tomada de decisões e o controlo dos processos, mais que uma necessidade para assegurar a consonância de propósito, foi uma opção importante na promoção da unidade de esforço e da uniformização de processos e de procedimentos. Já na ótica da centralização de serviços e da melhoria dos processos de gestão foram criados quatro departamentos: o Departamento de Operações (DOP), onde se concentraram os processos de desenvolvimento de padrões, planeamento, programação e avaliação do treino, de desenvolvimento de conceitos, análise e experimentação (CD & E), e de acompanhamento das acções de treino e das operações correntes, tal como rondas, segurança a instalações e actividades protocolares; o Departamento de Gestão de Recursos (DGR), que assumiu responsabilidade sobre o planeamento e controlo de todas as actividades relacionadas com o pessoal e com o material; o Departamento de Apoio Geral (DAG), que se constituiu como órgão «prestador de serviços» a todo o universo do CF, agregando todas as actividades de manutenção, oficinas, alimentação, transportes administrativos, paióis, escotarias, etc.; e o Departamento Administrativo e Financeiro (DAF) que assegura o planeamento e controlo de todas as atividades relacionadas com os recursos financeiros. A criação destes quatro departamentos resultou, na prática, na transformação de uma estrutura de natureza hierarquizada e mecanicista numa organização de características marcadamente matriciais (figura 4).

Entender as implicações desta alteração passa por perceber que no primeiro caso os processos se repetem ao longo das unidades e se desenvolvem na vertical, dentro de linhas de comando independentes que confluem no topo e sem interagirem entre si, enquanto no segundo caso têm uma natureza transversal, tornando-se abrangentes e comuns a toda a organização. A comparação entre as figuras 3 e 4 poderá ajudar a perceber ao que me refiro.

A lógica matricial é uma realidade estranha à cultura organizacional que perdurou no CF durante muito tempo, e segundo a qual cada comandante tomava as suas decisões e endereçava as suas necessidades sem grande preocupação com a envolvente ou com a necessidade de rastrear / controlar a evolução externa dos seus quesitos. A falta de coordenação fazia com que as solicitações não estivessem subordinadas a um sistema de priorização de necessidades integrado, o que no caso do apoio (lato sensu) era particularmente sensível, pois os conflitos eram dirimidos numa estrutura intermédia (Base de Fuzileiros (BF)) e não de topo. No caso do treino, por exemplo, cada unidade estabelecia o seu programa e prioridades, podendo acontecer que à altura de gerar uma força para projetar para uma missão, cada um dos elementos (manobra, anticarro, morteiros, etc.) se encontrasse em fases diferentes do seu ciclo de prontidão.

A articulação funcional entre os departamentos é agora crítica, pois todo o apoio e serviços passou a estar centralizado, e ocorreu uma migração significativa das responsabilidades subsidiárias e das tarefas de controlo do pessoal, do material e do equipamento, que no anterior se encontravam residentes na BF e nas unidades. Por esse motivo foram atribuídas competências próprias ao segundo-comandante (2CF), tornando-o responsável por toda a estrutura de funcionamento e colocando os Chefes de Departamento, à exceção do CDAF que reporta diretamente ao CCF, na sua dependência direta. Assegura-se deste modo a integração do planeamento e do controlo e promove-se a coordenação interdepartamental.

Na perspetiva da gestão o CF funciona agora geograficamente em dois polos, o do Alfeite e o de Vale de Zebro (este identificado com a Escola de Fuzileiros), e o DAG passou a ser o único responsável pela prestação de serviços a todo o universo do CF, concentrando em si as anteriores tarefas e responsabilidades da BF e dos Departamentos de Apoio da Escola Fuzileiros (EF), o que permitiu desativar esses órgãos. Neste contexto promoveu-se ainda à concentração de paióis, escotarias e oficinas, respeitando-se a repartição geográfica que melhor responde às prioridades e requisitos de prontidão das forças e unidades sediadas em cada um dos polos (Alfeite e Vale de Zebro / EF).

Toda esta alteração conceptual teve também implicações ao nível dos modelos de treino, que deixaram de ser responsabilidade das unidades para passarem a ser geridos de forma centralizada (DOP). É este quem agora define os planos, faz a programação, estabelece os objetivos e os padrões e conduz as ações de avaliação. Ao fazê-lo pode também introduzir requisitos específicos de experimentação para ensaiar nova doutrina e conceitos, validar a sua utilidade / aplicabilidade através das ações de avaliação, e rapidamente transforma-los em requisitos de formação, o que permite agilizar todo o processo de implementação doutrinária.

Devido à sua proximidade às áreas de treino (Mata da Machada, Troia, Carreira de Tiro da Marinha, pistas de lodo e de destreza, etc.), todas as facilidades de treino passaram a ser geridas pela EF. As forças que se encontram em processo de edificação de padrões – fase que sucede imediatamente à sua geração – passaram a estar sediadas em Vale de Zebro, onde se estabeleceu também o Serviço de Experimentação, Treino e Avaliação (SETA/DOP).


Pensar e fazer diferente

A opção de gerar e manter «forças constituídas e ativadas em permanência» difere da anterior lógica de configurar respostas operacionais a partir de «elementos de força» que se encontravam dispersos por unidades independentes. Se pensarmos que até agora os elementos «manobra», «morteiros», «anticarro», «reconhecimento» e «mobilidade terrestre» se encontravam dispersos pelo Batalhão de Fuzileiros número dois (BF2), pela Companhia de Apoio de Fogos (CAF) e pela Companhia de Apoio de Transportes Táticos (CATT), funcionando e treinando segundo requisitos próprios, o treino de força resultava incipiente enquanto tal, e era apenas conduzido durante os grandes exercícios sob a égide do COMNAV. O CF assegurava que os elementos de força desenvolviam proficiências básicas, mas o emprego de uma força-tarefa que agregasse diferentes elementos estaria sempre dependente de um treino dedicado (específico para a missão). Na realidade não seria possível assegurar os elevados níveis de prontidão operacional com tal modelo de geração de forças. Aumentar a prontidão implica maior disponibilidade, maior exigência na manutenção dos padrões de prontidão, e maior estabilidade na constituição temporal das forças. Alterar a configuração das forças significa mudar a forma de gerar efeitos: há que repensar os conceitos de emprego, as modalidades de ação, o pensamento tático, e, em consequência, a forma como treinamos.

Na ótica das forças e dos efeitos, as FFZ estão especialmente vocacionadas para a projeção além horizonte a partir dos navios da esquadra, fazendo uso dos botes de assalto e de pequenos contentores para levar equipamento / armamento «pesado». Conduzem prioritariamente incursões anfíbias, limitadas no espaço e no tempo à autonomia que lhes é dada por aquilo que podem levar consigo (rações, água, munições, etc.). Pretendemos explorar modalidades de emprego próprias da especificidade operacional dos fuzileiros – onde naturalmente se incluem as operações em rios e águas interiores e a dispersão / concentração de força –, procurando gerar efeitos de grande letalidade mas reduzir a pegada (footprint) em terra. Afastamo-nos por isso de lógicas de ocupação do terreno, para nos concentrarmos em algo que é específico e credível para forças anfíbias no contexto das limitações que temos.

Já na perspetiva da organização, centralizar serviços e concentrar infraestruturas (como paióis, escotarias, etc.) significa retirar responsabilidades aos comandantes e transferi-las para a estrutura de funcionamento. Ao nível das unidades e das forças deixa de fazer sentido a figura de «quartel-mestre», mas houve que criar e implementar todo um novo conjunto de normas e de procedimentos para permitir atribuir e controlar o armamento e o equipamento. Deixando de dispor de material a cargo e de escotarias e paióis para guardar, puderam ser desativados os grupos de serviço nos Batalhões e criado um grupo de serviço único em cada um dos polos, Alfeite e Vale de Zebro (EF)[5]. Tal significa, por exemplo, adaptar procedimentos para monitorizar espaços de lazer e alojamentos fora das horas normais de serviço, a fim de garantir a disciplina e o respeito pelos horários de serviço/descanso.

A centralização de serviços possibilita ainda gerar mais-valias funcionais importantes que se podem traduzir em ganhos não só de eficiência mas também de eficácia. A centralização das secretarias e a implementação de um «Gabinete de Apoio ao Utente» permite aumentar o controlo e uniformizar procedimentos, mas reflecte uma lógica totalmente nova de tratar os assuntos relativos ao pessoal que requer grande capacidade de adaptação dos comandantes. A centralização das oficinas auto e do planeamento das actividades de manutenção reflete-se num, mais que desejável, «achatamento» da organização e permite-nos ambicionar por melhorias significativas ao nível da manutenção programada, mas porque reduz os níveis de decisão e retira autonomia a alguns actores no processo, gera desconforto e resistências.

No plano dos RH existe hoje uma muito maior racionalidade no emprego dos militares que fazem parte do universo do CF, quer pela divisão de tarefas entre os BF1, BF2 e DAE, a que já se aludiu, quer por se assegurar um maior aproveitamento das perícias e competências individuais e colectivas, o que traz implicações na gestão das pessoas. 

Dispondo as FFZ de quatro pelotões que de base são todos gerados e edificados como «pelotões de manobra», dois desses pelotões desenvolvem posteriormente, através de treino dedicado, valências suplementares em anticarro, morteiros e reconhecimento. Estando os FZV, militares fuzileiros habilitados a conduzir viaturas tácticas, integrados nos pelotões, eles podem desempenhar funções em qualquer equipa, incluindo, por exemplo, as equipas de morteiros. Atenta a diversidade de sistemas e de configurações operacionais a adoptar, e pensando que as Secções desses novos pelotões funcionam com menos uma praça, em que o sargento comandante de Secção se assume como responsável pela primeira equipa, o destacamento de um qualquer elemento torna virtualmente inoperante uma dessas formações, e, no extremo, pode mesmo redundar na perda de uma valência da própria força. Por isso, se o impacte do destacamento de um FZV no encargo operacional do CF era difícil de quantificar quando estas praças se encontravam colocadas na CATT, onde o seu emprego primário era o de condutor, hoje, dando o melhor uso ao conjunto alargado de competências de que dispõem, são sobretudo empenhados como fuzileiros, pelo que qualquer falha é facilmente reflectida nos efeitos que são, ou não, gerados pela força a que pertencem.

A racionalização dos RH não se traduz assim e apenas na redução de efectivos: tem igual significado num aproveitamento mais polivalente das pessoas, que se reflecte no facto de grande parte dos militares passar a ter um encargo operacional: ou directo, porque se encontra atribuído ao dispositivo de forças, ou em CE, para permitir gerar estruturas de estado-maior e de apoio não permanentes (como o Elemento de Apoio de Serviços em Combate (EASC), responsável por parte significativa das funções logísticas em teatro). A consequência é uma muito maior dependência da estabilidade dos quadros de lotação, o que seria de esperar quando se passa de perto de 2.000 efectivos para uma proposta que não chega aos 1.300. Trata-se, além disso, de um enorme esforço que exige muito das pessoas, não só na perspectiva da alteração das suas rotinas, mas principalmente na forma de pensar a organização e o seu funcionamento. Mais do que assumir funções cuja designação se afasta daquelas que tradicionalmente faziam parte da gíria do CF, e com que sempre se habituaram a viver, a maior dificuldade está no compreender e adaptar-se a formas diferentes de pensar e de agir.

Estando conscientes do enorme desafio que esta reestruturação representa, sabemos que somos capazes de a concretizar e de elevar o CF e os fuzileiros a novos patamares de excelência. Para isso temos contado com uma enorme prova de confiança do Almirante CEMA e com grande apoio do Vice-almirante Comandante Naval, sem os quais nada do que conseguimos até hoje teria sido possível. É assim importante que se reconheça que o CF não pode mudar sozinho, e que a transformação seja acompanhada pelos órgãos de gestão superior da Marinha, sem os quais qualquer alteração, por muito bem-intencionada que seja, fica votada ao insucesso.


Luís Carlos de Sousa Pereira
Comandante do Corpo de Fuzileiros

[1] Pode dizer-se que uma unidade expressa uma organização administrativa e que uma força é uma estrutura operacional vocacionada para a geração de efeitos (organização para a acção). [2] Enquanto oficial do Estado-Maior da Armada, nunca vi, em nenhum dos brífingues periódicos ao Almirante CEMA, qualquer menção a deficiências e/ou limitações operacionais das forças e/ou das unidades de fuzileiros.
[3] 48 horas no caso da FRI, 5 dias para o CMF, e disponibilidade permanente para as FPAS.
[4] Sendo difícil de ler, considerar que uma mesma cor representa um mesmo tipo de tarefa.
[5] Mesmo antes da reestruturação já existia um grupo de Serviço Único na EF.

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